Asma Felina vs. Bronquite Crônica: Um Guia Completo de Diagnóstico Diferencial

Descrição do postA doença do trato respiratório inferior felino (DTRIF) é uma condição prevalente e desafiadora na prática clínica de pequenos animais, afetando aproximadamente 1% da população de gatos. Duas das principais causas de DTRIF, a asma felina e a bronquite crônica, compartilham apresentações clínicas semelhantes, mas possuem fisiopatologias distintas que exigem abordagens diagnósticas e terapêuticas específicas. Este artigo técnico aprofundado oferece uma revisão completa e baseada em evidências sobre o diagnóstico diferencial e o manejo da asma felina e da bronquite crônica, com o objetivo de fornecer aos médicos veterinários e estudantes de medicina veterinária as ferramentas necessárias para um manejo clínico preciso e eficaz.

Dr. Reginaldo Pereira

9/1/20257 min ler

Introdução: O Desafio da Tosse Felina

A tosse em gatos é um sinal clínico que, embora menos comum do que em cães, frequentemente indica uma doença subjacente significativa do trato respiratório inferior. A asma felina e a bronquite crônica representam as duas principais causas de tosse crônica em gatos, e a diferenciação entre elas é um passo crucial para o sucesso terapêutico. A asma felina é caracterizada por uma inflamação eosinofílica das vias aéreas e uma broncoconstrição reversível, enquanto a bronquite crônica é definida por uma inflamação predominantemente neutrofílica e alterações estruturais permanentes nas vias aéreas. Este artigo explora as nuances do diagnóstico diferencial, desde a anamnese e o exame físico até as mais recentes modalidades de imagem e citologia, e detalha os protocolos de tratamento atuais para ambas as condições, com base na literatura científica e na experiência clínica.

Epidemiologia e Fatores de Risco

A prevalência da DTRIF em gatos é estimada em cerca de 1%, com a asma felina sendo mais comumente diagnosticada em gatos jovens a de meia-idade (média de 4-5 anos). A raça siamesa é consistentemente relatada como tendo uma predisposição para a asma felina, com uma prevalência que pode chegar a 5% [1]. Fatores ambientais desempenham um papel significativo, com gatos que vivem em ambientes urbanos e em lares com fumantes apresentando maior risco. A bronquite crônica, por outro lado, pode afetar gatos de qualquer idade, mas é mais comum em animais de meia-idade a idosos. Fatores de risco para bronquite crônica incluem infecções respiratórias prévias, exposição a irritantes inalatórios e doenças dentárias, que podem levar à aspiração de bactérias para o trato respiratório inferior.

Fisiopatologia Comparativa: Asma vs. Bronquite Crônica

Compreender as diferenças na fisiopatologia da asma e da bronquite crônica é fundamental para a interpretação dos achados diagnósticos e para a escolha da terapia mais adequada.

1. Asma Felina: Uma Resposta de Hipersensibilidade

A asma felina é considerada uma reação de hipersensibilidade do tipo I a aeroalérgenos inalados. A exposição a alérgenos como ácaros, pólens e gramíneas desencadeia uma resposta imune mediada por linfócitos T helper 2 (Th2), que resulta na produção de imunoglobulina E (IgE) e na ativação de mastócitos e eosinófilos. A degranulação de mastócitos libera mediadores inflamatórios como histamina, leucotrienos e prostaglandinas, que causam broncoconstrição aguda, edema da mucosa e hipersecreção de muco. A infiltração eosinofílica crônica nas vias aéreas contribui para o remodelamento brônquico, incluindo hipertrofia do músculo liso, fibrose subepitelial e hiperplasia das células caliciformes. Uma característica chave da asma felina é a reversibilidade da broncoconstrição, que pode ser alcançada com o uso de broncodilatadores.

2. Bronquite Crônica: Dano Estrutural e Inflamação Persistente

A bronquite crônica, em contraste, é o resultado de um dano epitelial crônico que leva a uma inflamação persistente e a alterações estruturais irreversíveis nas vias aéreas. Acredita-se que a condição seja desencadeada por uma lesão inicial, como uma infecção viral ou bacteriana, ou pela exposição prolongada a irritantes inalatórios. A inflamação na bronquite crônica é predominantemente neutrofílica, embora uma mistura de células inflamatórias possa estar presente. As alterações patológicas incluem hipertrofia e hiperplasia das glândulas submucosas, metaplasia escamosa do epitélio brônquico e fibrose da parede brônquica. Essas alterações levam a um estreitamento progressivo e irreversível das vias aéreas e a uma depuração mucociliar prejudicada, o que predispõe a infecções bacterianas secundárias

Diagnóstico Diferencial: Abordagem Clínica e Laboratorial

O diagnóstico diferencial da tosse crônica em gatos é amplo e requer uma abordagem sistemática para distinguir a asma da bronquite crônica e de outras condições respiratórias.

1. Anamnese e Exame Físico

Uma anamnese detalhada é crucial. O clínico deve investigar a idade de início dos sinais, a frequência e a gravidade da tosse, a presença de sibilância ou dificuldade respiratória, e a exposição a potenciais alérgenos ou irritantes. Gatos com asma frequentemente apresentam crises agudas de dispneia, enquanto gatos com bronquite crônica tendem a ter uma tosse diária e persistente. No exame físico, a ausculta torácica pode revelar sibilos expiratórios, crepitações ou um aumento dos sons broncovesiculares em ambas as condições. A presença de um sopro cardíaco ou de outros sinais de doença cardíaca deve levar à consideração de causas cardíacas de tosse.

2. Exames de Imagem: Radiografias e Tomografia Computadorizada

As radiografias torácicas são uma ferramenta diagnóstica de primeira linha. Em gatos com asma, os achados clássicos incluem um padrão brônquico ou broncointersticial, hiperinsuflação pulmonar e, em alguns casos, o colapso do lobo médio do pulmão direito. Na bronquite crônica, o padrão brônquico é o achado mais comum, mas a hiperinsuflação é menos provável. É importante notar que até 23% dos gatos com asma podem ter radiografias torácicas normais [2]. A tomografia computadorizada (TC) de alta resolução é mais sensível do que a radiografia para detectar alterações nas vias aéreas e pode ser útil em casos complexos para avaliar a extensão do remodelamento brônquico e a presença de bronquiectasia.

3. Citologia das Vias Aéreas: O Padrão Ouro

A análise citológica do lavado broncoalveolar (LBA) é considerada o padrão-ouro para diferenciar a asma da bronquite crônica. O LBA é obtido por meio de broncoscopia ou de forma cega. Na asma felina, a citologia tipicamente revela uma inflamação eosinofílica, com contagens de eosinófilos superiores a 17-20% do total de células nucleadas. Na bronquite crônica, a citologia é caracterizada por uma inflamação neutrofílica não séptica. A cultura bacteriana do LBA é recomendada para descartar infecções bacterianas primárias ou secundárias, especialmente em gatos com bronquite crônica.

4. Outros Testes Diagnósticos

Testes para dirofilariose e vermes pulmonares (Aelurostrongylus abstrusus) devem ser considerados, especialmente em áreas endêmicas. A broncoscopia pode ser útil para visualizar diretamente as vias aéreas, avaliar a presença de muco excessivo, edema ou colapso brônquico, e para obter amostras para citologia e cultura. Testes alérgicos (intradérmicos ou sorológicos) podem ser realizados para identificar alérgenos específicos em gatos com suspeita de asma, embora sua utilidade clínica seja controversa.

Tratamento e Manejo Clínico: Uma Abordagem Personalizada

O tratamento da asma felina e da bronquite crônica visa controlar a inflamação das vias aéreas, aliviar a broncoconstrição e melhorar a qualidade de vida do paciente. A terapia deve ser personalizada com base na gravidade dos sinais clínicos e na condição subjacente.

1. Manejo Ambiental e Terapias de Suporte

O manejo ambiental é um componente crítico do tratamento para ambas as condições. A exposição a irritantes e alérgenos deve ser minimizada, o que inclui o uso de areia sanitária com baixo teor de poeira, a eliminação da fumaça de cigarro e o uso de purificadores de ar. O controle de peso é essencial, pois a obesidade pode exacerbar a inflamação e aumentar o esforço respiratório. Em alguns casos, uma dieta hipoalergênica pode ser benéfica.

2. Terapia Farmacológica

Corticosteroides: A terapia anti-inflamatória com corticosteroides é a base do tratamento para asma e bronquite crônica. A prednisona ou prednisolona oral é eficaz para o controle inicial da inflamação. Para a terapia de manutenção a longo prazo, os corticosteroides inalatórios, como a fluticasona, são preferidos por minimizarem os efeitos colaterais sistêmicos. A dose deve ser titulada para a menor dose eficaz que controle os sinais clínicos.

Broncodilatadores: Os broncodilatadores, como o albuterol ou a terbutalina, são usados para aliviar a broncoconstrição aguda. Eles são particularmente importantes no manejo de crises asmáticas. Para o tratamento crônico, os broncodilatadores de ação prolongada, como o salmeterol, podem ser usados em combinação com corticosteroides inalatórios. É crucial lembrar que os broncodilatadores não tratam a inflamação subjacente e não devem ser usados como monoterapia.

Outras Terapias: Em casos de bronquite crônica com evidência de infecção bacteriana secundária, a antibioticoterapia baseada em cultura e sensibilidade é indicada. A terapia com oxigênio é essencial para pacientes em crise respiratória aguda. A acupuntura médica tem sido descrita como uma terapia adjuvante que pode ajudar a reduzir a necessidade de medicação em alguns gatos.

Conclusão: A Importância do Diagnóstico Preciso

A diferenciação entre asma felina e bronquite crônica é um desafio diagnóstico que exige uma abordagem multifacetada. A combinação de uma anamnese cuidadosa, exame físico, exames de imagem e, crucialmente, a citologia das vias aéreas, permite ao clínico chegar a um diagnóstico preciso e instituir a terapia mais apropriada. O manejo bem-sucedido dessas condições crônicas depende não apenas da terapia farmacológica, mas também de um manejo ambiental rigoroso e do acompanhamento contínuo do paciente. Ao aprimorar nossa compreensão das nuances da DTRIF, podemos melhorar significativamente a qualidade de vida de nossos pacientes felinos.

Referências

1. Sharp, C. R. (2013). Diagnosis Of Feline Lower Airway Disease. Today's Veterinary Practice. Recuperado de https://todaysveterinarypractice.com/respiratory-medicine/diagnosis-of-feline-lower-airway-disease/

2. Padrid, P. (2006). Use of inhaled medications to treat respiratory diseases in dogs and cats. Journal of the American Animal Hospital Association, 42(2), 165-169. Recuperado de https://meridian.allenpress.com/jaaha/article-abstract/42/2/165/176024

3. Little, S. E. (Ed.). (2025). The Cat: Clinical Medicine and Management (2nd ed.). Elsevier.

4. VCA Animal Hospitals. (n.d.). Inhalant Treatment For Feline Asthma And Bronchitis. Recuperado de https://vcahospitals.com/know-your-pet/inhalant-treatment-for-feline-asthma-and-bronchitis